História

Todas as ilustrações: Douglas Santos

01 – A sombra de um homem

Há horas os grãos ardem em seus pés. À deriva, num mar de dunas, todas vivas, sem lhe indicarem rumo algum. Sem memória, não sabe dizer quem é ou o que faz ali. Como num sonho, ele simplesmente desperta, e vê-se caminhando no deserto.

A essa altura, o cansaço já dói forte. Acima, o Sol, não mais a pino, mas ainda no prumo das duras horas:

Sombra

Nos grãos que ardem em meus pés

Duras léguas caminhadas

Sob o Sol lambendo a fronte

Dor e espasmos postos à razão de andar.

 

Aos topos montes cobrem o céu

Dunas já por tanto andadas

Porta-me tão pouco a mente

Em tangíveis formas

Tudo mais me ampara a carne já cansada.

 

Aonde vou? A quantos passos vou parar?

 

Mudas! Dunas mudas, que nada respondem! Não ouve mais do que o vento e o barulho de suas passadas na areia. O torpor há tempos já lhe tomara o juízo. Ideias que se misturam:

Sombra

Sob o céu lambendo a areia

Posto ao Sol a caminhadas

Portam as léguas duras formas

Dores pasmas mais me cansam a carne torpe.

 

Intangíveis montes andam

Mentem e afrontam aos pés que ardem

Tanto as dunas tudo cobrem

Que tampouco amparam a razão já tão pouca

 

Aonde vou? A quantos passos vou parar?

 

No mais, apenas sua sombra, insistentemente a imitá-lo; porém, era a única personagem com quem poderia ele próprio contracenar:

Sombra

Há um homem nesta sombra

De estranha dor

Colhida em campos de muitos grãos

Que juram sorte a um rosto estranho

 

Mas a sombra deste homem

Não o diz nefando ou sem máculas

Se traz com brio sua espada

Ou se esconde um cetro desleal

Por que crer nesta sombra que se move com o vento?

 

Eu quero voltar à minha terra natal

Rever os meus que me esperam voltar

Poupar o tirano que me pôs aqui

Reviver a vida que um dia vivi

 

Onde estão minhas lembranças?

Onde enterraram o meu passado?

Temo esta sombra

Sol, não vás!

Dê um motivo pra eu caminhar!

 

Ah, minha loucura!

Temo essa sombra (Sol não vás)

O Sol me ofusca (Onde estou?)

Dê um motivo (Oh, meu Deus!)

Dê uma caverna pra eu repousar!

02 – Estação blues

Um trilho… de trem… no meio do deserto. E mais nenhuma pista até então, neste tão pouco tempo de vida de que consegue se lembrar. Sombra a­­cordara em um mar de areia e, até aqui, tão somente à deriva navegou. Agora, enfim, algo lhe oferta uma direção… e dois sentidos. Um e outro lado, ambos a sumir na largura das dunas. Para onde ir? 

Nenhum trem. Qual o sentido de um trilho sem trem? Nenhuma placa. Que direção o levará ao contato com alguma vida humana? Só e por si; assim deve tomar a decisão. Ah, essa liberdade mais que dói: corrói-lhe os ossos. 

Sombra apruma a fronte para qualquer dos lados e vai…

Narrador

Quando o trilho cega? Quando o cego já chegou?

Quão se trilha a meta? Quando a meta já passou?

Nau, a férrea nau, vagando a esmo

Nau, que ferra “now”, vagando a si mesmo

Nau, tão férrea nau, vagando assim mesmo

Quando o trem se perde? Quando quem se perde é o trem?

Quando o trem se move? Quando o trilho é que vem?

Nau, a férrea nau, vagando a esmo

Nau, que ferra “now”, vagando a si mesmo

Nau, tão férrea nau, vagando assim mesmo

Vem e vai, e tanto faz

Quando se perde um grande amor

Gira o mundo e volta atrás

Quando a estação se afastou

Quando se descobre um trilho e tem que caminhar

Qual dos mais de cem sentidos aponta um lugar?

Nau, a férrea nau, vagando a esmo

Nau, que ferra “now”, vagando a si mesmo

Nau, tão férrea nau, vagando assim mesmo

 

03 – Homens-vermes

Segundo o dicionário, o instante é o menor espaço apreciável de tempo. Mas também pode ser o que insta, que insiste, que é iminente, que é urgente.

Algum tempo se passou… Não me pergunte quanto, é tolice! Este escorredouro indelével, chamado tempo, que tentamos com alguma graça estancar para contar-lhe as gotas…

Quando, enfim, a sombra errante avista, ao longe, cúpulas de edificações sobressaltarem-se à paisagem modorrenta, então se apressa para adentrar a cidade, na ânsia de encontrar alguém que possa retirá-lo daquela causticante masmorra de indigência e solidão em que se enfiara. 

Entretanto, transpõe o portal e constata que na cidade não há mais uma só vida. Resta ali apenas um mundaréu de construções inócuas, nada mais que um rastro da vida pretérita. Tal como o trilho sem trem.

Este é um daqueles instantes que, por mais breves que sejam, têm intensidade tal para suspender-nos no próprio tempo, causando-nos perplexidade de amor ou horror.

Sombra

Ei, então cadê outros homens

Trás as pedras não mais se vê

Se puseram a andar pelos cantos

Se curvaram no pó pro seu livre rastejar

Acabou-se o sorriso franco

Ou jamais se riu tanto em algum lugar

Ei, então cadê outros vermes

Mostrem o seu rosto, voltem dos esgotos

Vêm aqui, hoje o Sol compensa

Vale a pena vir pra dançar

Reviver calma praça, tenta

Tragam as crianças pra brincarem ao Sol

Será que está posto

Acabou-se, então, tudo aqui está morto

Brigaram por pouco

Só sobrou um farnel em festim sob o pó

Pra quê?

Hoje o Sol compensa

Vale a pena vir pra dançar

Reviver calma praça, tenta

Tragam as crianças para verem o sol

Os doentes, não deixem os velhos sós

Tragam as lembranças, o que ficou pra trás 

Tragam tudo, talvez dê pra recomeçar

04 – O instante (Parte I)

Dia soturno que insiste em se manter. Não propriamente brilha, mas apresenta uma brancura opaca e sem graça. Sombra grita e só as pedras lhe devolvem a voz. 

Essa solidão que se arrasta junto aos seus pés! Um passo, dois. Tantos gritos, quantos ecos. 

05 – O grito

É quando sente o vazio agigantar-se dentro de sua carne que algo, enfim, se manifesta. Sua voz não mais retorna das pedras. Seus gritos não mais reverberam naquelas construções. O eco, que respondia a cada chamado, se emudece. Faz-se um terrível silêncio…

Dentro em pouco, o silêncio se quebra. Entretanto, não são mais os ecos de suas próprias palavras que ouve. A estas somam-se outras, e outras, e mais outras, até formarem um coro de vozes. Cantam-lhe coisas estranhas. Coisas que não se deseja ouvir. É uma sinfonia medonha, aquela vinda das pedras. O pavor toma-lhe as rédeas. Encolhe-se como pode. 

Narrador

Ah!

Deu um urro

E no nada a voz se fez

Ecos de aflição

Ah!

Outro urro

Mais um nada respondeu

Ecos de aflição

Eis um homem a caminhar

Entre sonhos e mentiras 

Que suas mãos contavam

O homem na cidade

E a cidade no homem

Eis um homem a caminhar

Sem bater no chão a areia

Que seus pés levavam

Deserto na cidade

E na alma do homem

Gritou:”

Sombra

“Me ajudem

O grito vem das entranhas

Que me devoram a carne

Que me esfolam tanto os pés

Me ajudem

O grito vem das entranhas

Que me devoram a mente

Que cortam a minha garganta

06 – Esculturas e vultos (Parte I)

Brumas ocupam a cidade. Fraca chuva aumenta o sombriço. E o nosso herói continua ali, ao chão, encolhido e pávido. Tremendo, arrisca uma espiadela e vê projetada na branca névoa uma sombra a se mexer! Em pânico, arranja algum espaço no ventre para se encolher ainda mais. Outra olhada. Constata que há algo de si naquele vulto. Algo do qual passara toda a sua vida a esquivar-se. Como se os seus desejos mais selvagens, seus medos e frustrações, ganhassem vida naquele negro monturo. 

Penumbra sagaz e traiçoeira, que quer lhe roubar a vida e revelar ao mundo segredos que até ao mais louco dos homens envergonhariam! Porém, por trazer algo de incontido em si, aquele negrume o faz recordar-se: vive das letras. Sabe-se, agora, escritor.

Sombra

Me olhou

Uma sombra olhou pra mim

Tinha mil faces o seu rosto que não pude ver

Viu em mim

Outra sombra viu em mim

Via mil faces do meu rosto que não pude crer

Sou a sombra 

Que sente o desejo de sair do chão

Sou a sombra

Que leva uma pena nas mãos

Embalou-me nos seus braços

Aquela sombra

Virou pra mim, mas

Mostrou que havia uma vil forma

A sombra acenou pra mim, mas

Mexia-se em estranha dança

Havia mil gestos, tentei retê-los, não pude

A sombra

Apontou pra mim, mas

Seus longos dedos curvaram-se

A sombra

Mostrou pra mim, mas

Espinhos tampavam o caminho

Havia mil flores, estavam mortas a cobrirem o chão

Embalou-me nos seus braços

Tava tão frio que não consegui mais dormir

Sou a sombra na sombra de outro homem

Que quer escrever

Sou a sombra na sombra de outro homem

Que quer volitar

Havia mil braços, todos entravam em meu rosto

 “Sombra”

Gritou pra mim, mas

Calado não pude mais gritar pra sombra

Sorriu pra mim, mas

Trazia um sarcasmo nos lábios

Havia mil corpos, todos com entranhas que se viam

Sombras

Jogou em mim, mas

Haviam apagado os papiros

A sombra

Chamou pra vir, mas

Pesavam as pernas tão gastas

Havia mil sonhos, todos rasgados que nem fossem meus

Embalou-me nos seus braços

Tava tão vivo que não consegui mais dormir em paz

Fez sinal

Uma flor fez um sinal

Estava tão calmo ali

07 – O instante (Parte II)

À margem do rio, Alma vê o Sol beirando o horizonte. À contraluz, a silhueta de um homem, com os joelhos imersos na água, segura uma flor. Ao derredor, árvores molduram longas torres. Tudo é tão terno e frágil, que chega a temer que qualquer algo de si desmanche aquele todo, como as mínimas marolas a fatiarem o reflexo na água. Em curtos movimentos, o homem dá meio passo à frente, erguendo-lhe a flor; uma réstia de rosto revela-lhe, enfim, certa familiaridade…

Eis outro instante. Aqui, nada urge, nada insta.

08 – Da lama blues

Um estrondo ritmado em rápidos compassos invade-lhe tão subitamente o sonho, esfacelando-o em um átimo. Desperta, ainda bêbada de sono e de pouca consciência. Recobra-se e confere pela janela o trem já prestes a adentrar a cidade. A viagem pelo Oriente continua:

Narrador

“Andando, rumo certo

O sonho lhe contou

A tal flor do deserto

O trem vagueia presto

Instante em que acordou

Mil grãos sobravam restos

Tudo se fez indizível

Seu amor surgiu do rio

Contra o Sol, às mãos a flor que brotou junto ao charco

O vento trouxe o gosto

Do cravo e cardamomo

Gozo no deserto

O trem vagueia incerto

No tempo que parou

Pra um sem-fim de gestos

Tudo se fez indizível

Seu amor surgiu do rio

Contra o Sol, às mãos a flor que brotou junto ao charco

Do regaço

Pela sombra

Vem da lama, vem

09 – Homens-germes

Para além da estação, a cidade esbanja vidas desnudas em alegria. Alma nunca estivera tão longe de casa e, ainda assim, sente-se pouco estrangeira. Como se afeiçoou de pronto àquele povo!

Alma

“Ei, há tanta vida aqui fora

Todos estão às ruas pra verem o Sol

São muitas crianças brincando

Outras a escutarem os anciãos

Um jovem casal se enamora

Enquanto dedilha uma mística canção

Ei, há tanta vida aqui fora

Casas ficam abertas durante o pão

Enche a cidade em oração

Trama mil fios pobre tecelão

Enquanto recita uma mística canção

10 – Espaço Mágico (quebrando a quarta parede)

Segundo E.M Forster, “No Oriente a civilização vagueia como um fantasma, visitando novamente as ruínas imperiais, e será encontrada não nas esplêndidas obras de arte ou nos feitos grandiosos, mas nos gestos que fazem os indianos bem-educados quando estão sentados ou deitados”.

Ah, que gestos! Esse povo sabe fazer da rua um teatro a céu aberto. Conversam entre si como se dançassem; e dançam como se conversassem com os deuses. Gestos que parecem transcender, de alguma forma, a nossa realidade, conduzindo-nos a um fantástico mundo paralelo.

Alma está maravilhada. Conhece-os tão bem pelos livros!

Seus sentidos estão aflorados e, como nunca antes, frui…

Narrador

“Silêncio

Num claro instante em que se perdeu

Para ver doces mãos

A dançarem um tempo infinito 

A riscarem uns versos no céu

Nem tava lá

Quando parou pra ver a moça dançar

Aprendeu com os deuses

E dos olhos fez brotar a vida

E do gesto, o amor que se refez

São fantasmas nas ruas 

São fantasmas nas casas

Ocupando as ruínas

Que algum rei deixou

Não nas obras de arte

Nem nos altivos feitos 

Mas nos simples trejeitos

Nos lugares comuns

Onde quer que se movam as mãos 

Os olhos vão atrás

Onde a mente se encontra mais

Onde faz o amor surgir

Onde se deixa a dor cair

Onde se deixa o mal em si

Longe a alma voou dali

No céu que ali parou”

 

Mas como é inconveniente a miséria escrachada no trajo desse povo, que lhe ancora a alma e lhe arranca o gozo. Estranho contraste, inesperada interação com aqueles personagens, que conhecia tão bem pelos livros. Sente-se espectadora única de uma encenação épica. Constrange-se…

De volta, Alma anima-se em constatar que a poesia ainda está ali, naquela música, naquela dança. Algo da vida simplesmente flui por aquelas mãos. 

Alma jamais havia sentido a vida pulsar tão fortemente dentro de si. Aquele fim de tarde remete-a à hora em que recolhe sua barraca de flores e vai para casa. Um dia após o outro. Mas jamais havia atentado para o fato de que, naquelas horas áureas, o dia ainda pulsa, as flores ainda nos oferecem o seu perfume e o esplendor de suas cores, os sonhos ainda se revivem, ouvem-se os gorjeios dos pássaros e o canto das cigarras, veem-se as crianças brincando na porta das escolas, a vitrola toca a Ave Maria das seis. 

Narrador

“Estranho assim ficou quando tão perto viu

Há crianças fartas, pouco pão

Há papoulas nos jardins das ruas

Há um povo que esqueceu de ser

Tais doces mãos

A gotejar no céu, tão fortes cores

A dizer o que as palavras calam

Como Pollock a lembrar os loucos

Como o éter a trazer o gozo

Onde quer que se fale 

Onde quer que se ande

Onde se finda um instante 

Onde o amor inda vale

Onde nunca desabe

Onde nunca se espante

Onde os livros da estante

Cujas letras não falem

Estranho assim ficou

11 – Memórias

Já cansada de vagar pela cidade, Alma decide descansar. Encontra uma árvore, próxima a um espelho d’água, e recosta-se. 

Por alguns instantes, reflete sobre não se recordar de planejar aquela viagem para terras tão distantes. Em verdade, a última lembrança que lhe vem antes de acordar no trem é a de estar à calçada vendendo flores. Talvez porque passara tempo demais trabalhando.

Calmamente, retira da bolsa o caderno de memórias. Também não se recorda de já ter lhe confidenciado algo. Decerto porque aguardara para escrever algo que realmente se destacasse em sua vida quase linear. 

Abre-o, folheia uma página, duas, três, todas brancas. Avança algumas mais e vê memórias que não são suas. Textos e imagens que, apesar de conterem certa familiaridade, não correspondem à sua vida. 

Subitamente, forte vertigem arranca-lhe o fôlego e os sentidos. Perplexa, constata que não possui memórias. Sente que sua vida começara exatamente naquela calçada onde vende flores. Dali para trás, sem lembranças. Não havia infância, nem família, nem amigos, nem amores.

Narrador

“No seu diário

O herói estava lá

O dragão estava lá

A donzela estava lá

Mas não tinha qualquer foto sua nos tempos de infância

Virou a folha, viu que

O velho estava lá

O assassino estava lá

A Virgem estava lá

Mas não tinha qualquer foto sua a lembrar seu rosto

Aqueles não são seus

Os ritos não são seus

O mundo não é seu

Onde estão os seus anéis (Alma: Cadê os anéis)

Cadê os seus papéis (Cadê os papéis)

E os seus pincéis (Me dê os pincéis)

São os outros (Não são os meus)

Outros ritos (Não são os meus)

Um mundo que ainda não tinha pintado

Pouco tinha de si pra que pudesse ver

Outros sonhos (Não são os seus)

Outros contos (Não são os seus)

Outras vidas

Os vampiros tavam lá (Já perdi o meu sangue)

A montanha estava lá (Já perdi o joelho)

A esfinge estava lá (Já perdi o segredo)

Poucos grãos tinha andado, inda não tinha sombra pra ver

Vê o herói

Vê o dragão (Eu sei que era eu)

Vê a donzela (Eu sei que era eu)

O velho sábio (Eu sei que era eu)

O assassino (Eu sei que era eu)

Virgem Maria (Eu sei que era eu)

E tem os outros (Eu sei que era eu)

E tem os ritos (Eu sei que era eu)

E tem os mitos

Disco 2

12 – A sombra e a flor

Eis o primeiro momento em que os personagens entrecruzam-se… Sombra, fadigado com a solidão de muitas horas, e Alma, recém-tomada de assalto por eloquente vazio. Ambos perdidos de lembrança pouca.

As águas daquela fonte caem com vida e inspiram alguma trégua. Alma senta-se à borda e mira sua imagem na água. Pensa que jamais esteve tão desnorteada. Também, antes, pouco se ocupara em se buscar. Carrega agora no rosto a gravidade, abandonando a complacência juntamente com a própria ignorância.

Exatamente ao seu lado, Sombra se aproxima. Não se veem. Ele se ajoelha no chão e apoia os cotovelos na borda da fonte. Curva-se, então, mas não vê o seu reflexo! Espera… Há uma imagem refletida na água, mas não é sua. Tem, em seu lugar, o reflexo de uma mulher. 

Alma também vê algo. Uma sombra humana a projetar-se, retorcida nos rebordos da fonte. A moça recua um pouco, olha para os lados, não vê outro corpo além do seu. Leva as mãos à boca, sofre de espanto. Olha para dentro do espelho d’água e vê, ao lado do seu reflexo, a cabeça daquela sombra. Porém, percebe que não há sombra sua naquelas águas. Volta-se para fora da fonte. Olha seus braços: estão lá. Mas, abaixo de si, nenhuma sombra a acompanha. Há quanto tempo será que isso lhe ocorre? Ah, como é distraída…

Por silenciosos minutos contemplam-se, até o Sol se pôr.

13 – A flor de Narciso

A flor que boiava na fonte o havia trazido até aqui. Mas não imaginava que veria aquele rosto de mulher refletido na água, de traços finos e serenos. Sombra sabe: é o mesmo que imaginara sobre a protagonista do livro que estava escrevendo. 

Depois da estranheza, a contemplação. Vê-la pela primeira vez com os próprios olhos, naquele espelho d’água… A ela dera um pouco de si. Na verdade, deu-lhe tudo. Gerou-a e cuidou no fio das horas. Mas Alma trazia ali uma maturidade no olhar que o escritor não havia imaginado.

Com o pôr do Sol, ficou só. Alma já havia partido.

Sombra

“Reluziu,

Num breve instante

Às águas calmas

Reluziu

Foi um rosto

Não mais um

Estranho rosto

Reluziu

Surgira como a flor

Brotada em meio ao caos

Num riso incauto

Era uma flor

Que em doce brisa se desfez

Mas reluziu

Como um presságio

Às claras águas

Reluziu

Mas foi um rosto 

Não mais das 

Entranhas, rosto 

Reluziu

Vinda como a flor

Brotada em meio ao caos

Num riso fausto

Foi uma flor

Que em doce brisa se refaz

Mas o instante assim parou

Pareceu-lhe um outro amor

Talvez uma lembrança

Além do que pudera dar

A triste pena que me fez sonhar

Tão longe

Fez-se um gesto a flutuar

Tão longe

Longe riso penetrou o regato

Longes

Demorou-se olhar aos longes

Longes quantos quis voar 

Mais alto quanto acasos

Me fizessem só

Tão longe

Longe quanto espera ver 

A sombra refletir às águas 

Longe

Longes águas voam suas asas 

Longe

Reluziu de mim uns longes

Longes quanto quis voar 

Mas tão só no ocaso

Pude ver o Sol

Mas o instante assim parou

Surgira enfim um outro amor

Talvez tão tristes rosas

Me fizeram ser assim

Uma sombra que não mais se quer ver

14 – Um outro dia

Não há mais sombra alguma na fonte, o Sol havia se posto. Vendo-se só, Alma se levanta e sai a andar. Desta vez, não é o cenário que a distrai, mas os próprios pensamentos.

Algo se desnudara desde o momento em que parou para descansar: as lembranças que não eram suas, a vida vivida pela metade, a viagem não planejada, a falta de uma sombra a lhe acompanhar os passos, e aquele vulto de homem… Não sabe definir o que é para si aquela silhueta. Uma mistura de medo e coragem, como se horror e potência convivessem na mesma forma. Mas sabe que aquela é parte sua. Tem, pois, a sombra de um homem. Fugidia e diversa, ela é, porém, sua. 

De súbito, brota-lhe um pensamento de inquietude, fazendo-a aprofundar-se mais em si própria: a incerteza de se saber Ser. De onde vem? Quem é? O que é? Na verdade, Ser ela sabe que é, pois está ali, existindo, sentindo, pensando. Sim, existe! Mas por que mãos?

Não tem mais dúvidas: possui, sim, uma essência inventada. Presume que saiu de uma máquina de escrever. Sofre forte vertigem. Dá até para sentir o cheiro da tinta à sua volta.

Alma

“Vim do livro 

Que não explica de onde vim

Qual o sentido

Quais eram os planos

Pra que vida?

Do livro

Que minha história mal vivi

Foi-se extinguindo

Fui definhando

Quais os planos?

Vim do livro

Do qual passado esqueci

Foram palavras

Que desbotaram 

As flores

Dum livro

Do qual não consegui sair

Mais eu nadava

Mais me afogava nas horas

Duras horas

Um só minuto

E tudo para

Canta bela e negra voz 

A aliviar

Um só minuto

E tudo para

Toca uma nota azul

A aliviar

A inebriar

A entorpecer

Vai desbotar

Estou fadada a ser livre

Estamos todos nós fadados a ser livres

Livro

Que tem paredes levantadas

Lá me trancaram

Me desnudaram

Me queimaram

Do livro

Livro que me dava náuseas

Atrás de tudo

Não existia mais nada

Mais que nada”

15 – Esculturas e vultos (Parte II)

Alma se demora uma noite toda a andar pela cidade. Chuva fina insiste em cair. Seus pensamentos ainda pululam entre uma e outra tese.

É tarde, as pessoas já se recolheram há muito. Sozinha, vai costurando por entre as pedras edificadas. Construções, pensa, que pareceriam completamente inúteis, não fossem os homens a ocupá-las ou admirá-las. 

Passa por um pequeno jardim. Gosta de trabalhar com as flores. Registram, com encanto, momentos importantes; entretanto, com estes perecerão, fiéis, restando somente na memória. Eis sua beleza: são majestosas e ternas, porém frágeis e fugazes.

Chega, então, a um largo, com muitas estátuas. Alma passeia por entre elas, fitando-as no rosto, observando seus gestos. São retratos de heróis, artistas, pensadores, santos, anjos. São valores em muitos matizes, ali concretizados. 

Talvez pelo cansaço de andar tanto e só, um instante de devaneio lhe toma o ímpeto. Alma encara nos olhos uma das esculturas e as questiona: “O que de nós encontramos em vós? A altivez de vossos gestos, a revelarem nossos feitos heroicos, ou as vossas sombras, a esconderem a dor dos vencidos – e esta velada na nossa própria dor… a dor do próprio herói-tirano?” 

A musa dá um passo ou dois e lhes fala, com mais vigor: “Não percebeis que, sem a luz do dia, exibis senão frágeis sombras, enquanto vos enganeis com os vossos próprios gestos altivos, feitos somente da pedra fria, e que algum dia também aniquilar-se-ão?” Como o poema a tocar o ouvinte, agora é Alma quem busca tocar o poema, fazendo-o perceber a própria fraqueza.

Alma se cala. Sabe que há muitas esculturas ali. “São valores em muitos matizes”, conclui.

Alma

Me olhou 

Uma imagem olhou pra mim

Como ninguém já o fez

Era calmo e estoico o seu olhar

Como só mirasse a si

Me sorriu

A efígie riu pra mim

Como ninguém já o quis

Era raro e retórico o seu sorrir

Nada à frente de si

Nada além do que era

Há tantos gestos aqui

A falarem mais do que jamais se ousou

Alguma essência de tantas flores a voar

Bronze e pedra dançando ao luar

Abrigou (Sombra: Tava tão frio)

Uma estátua me abrigou (Tava tão frio aqui)

Como ninguém fez pra mim (Não consegui mais dormir)

Era caro e heroico o seu abraço (Embalou-me nos braços)

Como se não visse a si

Volitou (Eu sou a sombra)

A escultura volitou (Eu sou a sombra)

Como que dentro de mim (Que quer escrever)

Era claro e lógico o seu fluir (Quer volitar)

Esculpido em si (Uma flor tava ali)

Nada além do que era

Há tantas formas aqui

A falarem mais do que jamais se ousou

Alguma essência de tantas flores a voar

Nada à frente de si

Nada além do que era

Há tantos gestos (Há tantos gestos)

A falarem mais do que jamais se ousou (Há tantas falas, sinto o cheiro das flores)

Alguma essência de tantas flores a voar (Sinto que quero voar)

Bronze e pedra dançando ao luar (Para dançar ao luar).”

16 – A chave dos portões que guardam o jardim de sua casa

Após o episódio da fonte, as lembranças de Sombra transbordaram. Aquele trem, a cidade, os monumentos… Está no cenário que exaustivamente pesquisara para escrever seu livro! Entretanto, onde a história jamais seria contada. Onde sua musa o guardaria apenas na fantasia; seriam lembranças do que jamais viveria.

Sim, Alma era sua musa. Uma florista, tão frágil quanto as flores. Coitada, era só. Filha única, perdeu cedo pai e mãe, que também não tinham irmãos. Parentes mais distantes, não os conheceu. Também não se esforçou para fazer amigos. Dera-lhe uma alma insossa, sem capacidade de tremular-se ao pulso da vida. Ao longo daquelas páginas, quase nada viveu. Todos os dias, andava muito pouco para chegar do apartamento à banca de flores e da banca ao apartamento. No mais, apenas pensamentos preenchiam-lhe o resto de vida. 

Chegou o escritor até a lhe oferecer alguma esperança. Mantinha nela a pretensão de viajar um dia para o Oriente. Esperança rasa, qual Sísifo a manter a pedra no alto do monte. Mas, no fundo, ela sabia que jamais iria. Não fosse o dinheiro, faltaria coragem. E se houvesse coragem, não teria impulso. No fim, faltar-lhe-iam vísceras para realizar qualquer sonho. No fim, a simpatia pelo povo de lá serviria apenas para que esquecesse um pouco do povo de cá. Era pra ser assim…

Mas sua personagem foi crescendo que foi criando luz própria. Realmente, quase nada viveu entre as flores e o apartamento. Entretanto, mesmo naquele pouco de vida, houve de brotar em sua face um sorriso ingênuo e puro. Depois, surgiu um olhar compassivo, acompanhado de gestos firmes, que ao próprio escritor faltava. Por fim, a florista tinha uma alegria inabitual, também desconhecida pelo seu criador. 

Então, num belo dia, em que tudo pareceu colorido com mais vigor… Já no fim da tarde, cujas horas lentas fizeram-na pressentir não menos que a continuidade sossegada da vida… Quando uma brisa transcendeu-lhe o tato, concedendo-lhe uma ponta a mais de alegria… Em que fechou os olhos para perceber o ar fresco entrando nos pulmões, o coração batendo manso, a cabeça pesando leve, e nada em si pareceu-lhe entrecortado e pouco… Em que tudo à sua volta se tornou tão terno e perene, fazendo-a desejar a vida como nunca… Neste momento de quase descoberta, que em breve se romperia em epifania… Neste único e infindo instante, já quase no final do livro, em que Alma despertara no escritor alguma graça… um carro repentinamente invadiu a banca de flores na calçada e lhe tirou a vida.

Um profundo vazio imediatamente tomou conta do escritor. Não saberia ele se pelo término próximo do livro ou se pelo fim consumado da musa. Nauseado, mal teria forças para um epílogo, após aquele trágico. Não desejava mais escrever. Também não queria fechar aquelas páginas. Mas história nenhuma simplesmente acaba na morte, sempre há um desfecho. Terminar o livro… Um temor queimou-lhe o corpo. A cabeça pesou e, então, caiu no chão, semiconsciente. Encolheu-se, e ali ficou, imóvel, hora após hora.

Revivia o pesadelo, sem descanso. Não, esse final não estava planejado, mas Alma fizera por onde. Dera-lhe o conformismo, tudo o que precisava; mas ela alcançou uma ternura cortante, como se estivesse prestes a negar a imanência do mundo. Agora, para ele, somente a morte poderia livrá-la desse mundo sem sentido!

Tremeu-se. Sem ela, viveria só. Ou melhor, ainda vivia? Nem isso sabia. Encolhido atrás da porta do escritório. Foi assim que adormeceu, antes de despertar no deserto. Esta havia sido sua última lembrança.

Sombra

Então que em derradeiro instante

À força é posto termo a tudo

E o nada, tão preciso, falha

Corta-me ao meio

Eis que, em paz, mereço a escuridão

Das torres do silêncio

E ando cego pela corda bamba

Quem testemunha esta minha

Inglória luta contra tal

Rufar profano vindo de tiranas dunas?

Qual vernáculo descreve à vera

Este chão que piso

Qual tributo ao trono irei pagar?

Ah, quantas noites acordado

Esperando atrás da porta

A musa dos parnasos últimos voltar

Qual louco sonho nele crê sujeito insano

Ah, triste queda veio a foice

Que mostrou-me as chaves dos portões de ferro

E uniu meu mundo ao seu

E agora posso dar, enfim, último beijo

Então que num primeiro instante

À força é posto termo ao nada

E tudo impreciso falha,

Corta-me ao meio

E, sem paz, me deito à escuridão

Das dores sem silêncio

E quase caio dessa corda bamba

Quem traz à destra a libra,

Atesta quanto vale ou não a vida?

Formará ao meu lado a fila dos diletos?

Se és tu, quão pesa carregar na mente um juiz

Que escarne e nada em mar de rosas púrpuras?

Ah, quem levou de mim a musa

De meus últimos parnasos    

Para correr livre nos Elíseos? 

Ah, qual sua tríade e em que céu ficou?

Ah, quem está com a chave

Dos portões que guardam o jardim de sua casa?

Em que rio navegar

Para que possa dar enfim último beijo?

Então que as letras da estante?

O nada não põe termo a tudo?

A força vem mostrar

A sombra do meu pensamento

E, sem paz, me deito à escuridão

Das dores em silêncio

E caio livre dessa corda bamba

És o carrasco dessa gente

Desumana que acusa

Caído em queda de lasciva fúria?

És Virgílio a levar-me à porta do 7º círculo

Me ver em exílio neste sangue afogar?”

17 – Deste ao homem

Sim, tenho nome. Sou Públio “Virgílio” Maro, poeta romano, nascido e morrido antes de vossa era. Tenho por missão, ou sina, perambular pelo tempo, acompanhando grandes jornadas. Vi Eneias chegar às margens da Itália e Dante afundar-se nos profundos círculos do Inferno.

Vim para relatar mais uma viagem, talvez a mais estranha de todas: um escritor que adentra a própria história, vivendo no mundo que ele mesmo criou. Como um dramaturgo que atropela a coxia, devassa o tablado e desnuda seus personagens, bem diante do público. 

Cá estou, também, para invadir o vosso palco e desnudar o homem. Falo das vossas fragilidades, quais vos aproximam das flores. É preciso, pois, gravidade e serenidade para apontá-las.

No entanto, ó homens, quantas dessas fragilidades perambulam sonsas em livros de ideias circulares, que, de tantas voltas, hão de vos causar um embrulho no estômago muito antes de vos oferecerem alguma saída do próprio martírio! Tais obras são, realmente, bem escritas e contam deliciosas histórias. As palavras ali flutuam e harmonizam-se tal, que ao leitor não faltará prazer e descobertas. Certamente não são desprovidas de qualquer beleza e verdade, posto que homens inteligentes as escrevem.

Entretanto, autores há que se aprofundam em si próprios para tentar desbravar o espírito humano. E encontram, então, uma velha moribunda e caiada de joias, tornada feia e má, crendo-se com alguma beleza e encanto. Mas como pretendem parecer jovens e cheios de viços! Por fim, escreverão tantas momices intelectivas que, de tanto mau humor e alguma sagacidade, estarão sobretudo tratando de justificar a arbitrariedade de suas próprias neuroses, potencializando, contudo, as vossas. Mas, por favor, não façamos um index! Deixemos que cada um por si encontre o livro de sua vida.

Tive que aparecer nesta que é a história da história. Às ocultas aproximei os dois personagens e o que ocorreu? Nossos heróis tiveram uma crise de histeria. Peço desculpas. Inicialmente não me revelaria, mas como é frágil o homem! Seria menos trabalhoso cuidar somente das flores…

Narrador

“Deste ao homem o que ao homem é dado ter

Teu rosal sonhavam tantos

No orvalho, o sal de ternas lágrimas

Deste apenas o que foi-lhe dado ver

Teu rosal era o mais belo

Rimaste o perfume às cores

Mas negaste simples flor aos teus

Deste às letras tuas rosas (Sombra: Nascera ditosa a flor das montanhas de Lácio)

Mas presa às formas tuas rosas sentiam (Mas farto era o brilho e cheiro da pólvora)

Tu forraste o chão de lindas rubras sedas (E a voragem aos despojos da vida moderna)

Mas houve a gélida queda das pétalas (Que não pude ver além das grades e das macas)

Creste das flores fastio e morte (Sob a rosa, uma ossada em tumba de ouro e mármore)

Mas foram fortes na tua vigília (Mas não vi que era a minha derrocada)

Viste apenas no orvalho o fruto da noite (Apenas via sobre mim um panteão de falsos deuses)

Mas elas choravam a morte dos teus (Brindando a morte dos meus)

Viste apenas o que o homem cego vê

Chora tua alma rupestre

Chora fértil campo às tuas flores

Creste apenas no que o homem cego crê

Viste um par de mãos de ferro

Esmagando tuas rosas

Mas não creste em tuas próprias mãos

Viste apenas o que um homem cego vê”

18 – Esculturas e vultos (Parte III)

Alma ainda vagueia pela cidade, enquanto Sombra está a procurá-la. Ao contrário do começo da história, agora é Alma quem está perdida. E lá se vai uma noite perambulando. 

Sombra chamou-a por diversas vezes. Em vão, pois ainda não é pelo verbo que se comunicam. Buscou-a exaustivamente por todos os lados, nas ruas e largos. 

Vê uma poça abrigar-se no chão. “As águas, é claro”! Revelaram-lhe a musa uma vez, hão de mostrá-la novamente. Procura-a, então, em todo resquício de água no chão. Fez isso por todo resto de noite. 

Até que a encontra, boiando em um filete de água adormecido na rua. Já é dia, ainda de pouco tempo. Ela demora a mirar-se em uma dessas poças. Está triste. Pensa o escritor: aquele era o semblante que eu havia tentado lhe colocar durante toda a narrativa do livro. Intento frustrado e vencido pela doçura da personagem. 

Alma se espanta ao voltar a ver aquele vulto. Uma sombra fraca, quase misturada ao cinza ainda escuro do logradouro. Disforme de tão alongada, tem as pernas fincadas na rua e o tronco flutuando em uma construção. 

A sombra, com uma das mãos projetada na parede, acena. Alma responde, mas ele não a vê. Sombra se debruça mais perto da água e vê que ela havia se afastado. Alma está próxima à parede onde está projetado o tronco dele. Sombra, então, aponta-lhe para que volte à poça. Ela atende. Ele faz um novo aceno na parede e Alma responde, pelo reflexo da água. O escritor, então, aponta para outra poça e, lá chegando, vê, pela água, que a mulher também se aproxima. 

Sombra anima-se e indica mais um resto de água, outro, e outro; Alma, crê haver ali um caminho certo e diligentemente o segue. Começa, assim, um balé, onde uma sombra, desajeitadamente longa e repartida pelos recortes da cidade, vai saltando de poça em poça.

Narrador:

“Para onde o dedo aponta os caminhos 

Ela vai atrás

Para onde o vento traz o odor das flores

Ela vai atrás

Para onde o anjo voa seus destinos

Ela vai atrás

Para o monte aonde o cara leva a pedra

Ela vai atrás

Não tinha sombra

Mas não viu

Enquanto se distraía

Há em tantos prédios marcas a seguir

Há uns tantos cheiros outros a seguir

E há em pedra um anjo 

Mas também

É o cara que desce a montanha

A pegar a pedra

19 – Sangrou

E lá se vão, Alma e Sombra, criatura e criador, se entenderem. Enquanto isso, peço novamente licença para devassar o tablado. Agora, desejo desnudar a mim mesmo. Ainda sou um narrador lírico, intrometido e efusivo, que busca a onisciência, mas acaba por se atrapalhar na própria estupidez.

Narrador:

“O meu coração

Viu muita sombra a flanar

O meu coração

Viu muitos sonhos pelo ar

Mas chorou

Quando viu

Tantas sombras revoltas despidas das mãos

E sangrou

Quando viu

Sonhos que não querem voltar

Mas chorou

Quando viu

Que rebeldes já eram tiranos quando o rei caiu

Quando viu que injusta Lei

Também estava um tanto em mim

O meu coração sangrou (Sombra: Há tantas sombras e luzes dançando)

20 – Mitos e sonhos

O horário da manhã já avançou bem e a jornada continua, quando, à vista de Alma, descortina-se aquela que lhe era a visão mais inspiradora. No lado de lá da ponte, bem à sua frente, está o templo com o qual sonhou muitas vezes. Sonho do qual sempre acordava com uma réstia de pressentimento: uma jornada deveria ser seguida. Presságio este misturado com esperança pouca, e esta maculada por mil dúvidas.

Ali está ela, no lugar que lhe inspira paz. Agora, pouco importa de onde vem. Talvez, pensa, o próprio homem ainda esteja longe de descobrir a fonte de todo o Universo. Quiçá esse ser, cognoscente e cognoscível, não mais consiga do que inseguras ranhuras no véu que nos excede ao infinito. 

Alma impressiona-se com a soberania do templo. Um conjugado de seis enormes obeliscos, todos em tom terroso e detalhados com entalhos de muitas imagens, a garantir belíssima irregularidade. No meio deles, repousa um pequeno lago de água verde. Tudo se conjuga perfeitamente com o céu de intenso azul e com uma vegetação diversa. Há ali muito mais do que reparara nos sonhos. Um espetáculo de formas e cores vivas, apesar da nota de pouca bruma, inexplicavelmente mantida apesar da hora matinal mais avançada. Alma confunde-se se está novamente a sonhar. Sente-se, pois, em um quadro com pinceladas levemente impressionistas.

Ela, então, reflete: “Não venham somente mergulhados em sanha os versos a inspirarem os homens. Eles endurecem o seu coração, fechando portas e janelas para si, para o outro e para o mundo. Antes, cantem as fragilidades que instam o seu engrandecimento, em seu potencial mais terno: o poder de amar. Amar a si e ao outro, apesar de suas fraquezas. Amar o que se enxerga, apesar da visão opaca; amar o agora, apesar das inconstâncias do amanhã; e amar a vida, apesar do inexorável”.

Ao atravessar a ponte, Alma se vira e percebe que a sombra não está mais ao seu lado. Procura-a à sua volta e a encontra à frente, já avançando lago adentro, enquanto a água enlodada, de uma verdura opaca, calmamente se turba. Quando a sombra chega ao meio do lago, uma flor de lótus se eleva à altura do peito e um sólido de homem lentamente se forma.

Sombra:

“Eu tive o sonho mais bonito

Que trazia a flor nas mãos

E vestia uma bata

Entre cem árvores e templos

O ocaso embala o Sol

E seus olhos reluzem

Meio a lodo e água

Alma:

Você está aqui

Isso não vivi

Não peguei o melhor de ti

Você está aqui

Isso não vivi

Não peguei tuas vísceras pra mim

Sombra:

Algumas vezes eu tive o sonho

Que foi desaparecendo

Como tua memória

Como flores mortas

Era um sonho mais perfeito

Flor de lótus em minhas mãos

Mas não vi o seu rosto

Não vi suas dores

Muitas flores você deu

Tantos amores pelos olhos teus

E quantos planos você sonhou

Mas viver te deu medo

Pois seu livro não mais abri

21 – Dança das esferas

Exatamente como no sonho, o Sol a ofusca, permitindo que veja apenas a silhueta do homem. Entretanto, sabe que não terá de acordar e faz da mão uma pala, levando-a aos olhos para tentar enxergá-lo melhor. Então, fragmentariamente, sua imagem vai se revelando, como pinceladas fugazes a se esquivarem da forte luz.

Alma identifica, primeiro, a bata, larga e clara. A calça é mais justa e escura. Depois, vê no rosto uma barba de pouco comprimento. Há também uns óculos, de lentes estreitas. Quando, enfim, o escritor vira um pouco a cabeça, vê metade de seu rosto, de semblante amável e sereno. Parece-lhe que a barba está a esconder um sorriso tímido, que, por sua vez, oculta suas dores. Dores estas que também ela pode sentir, como criatura que é. E vê que, de certa forma, ele compartilhava as dela.

Coro:

Eis a estrada do Amor

Que tanto fere os pés

 

Eis a luz do Belo

Também reluz você

 

Eis que a Verdade

Recordarás também

 

Eis que brota frágil flor

A revelar o céu

 

Alma também entra na água e vai ao seu encontro. Abraçam-se, dançam e riem juntos. E, assim, sentem-se unidos e completos, como se fossem um só, enquanto o Sol brilha intensamente…

Sombra:

Vi a sombra chegar

Estava bem feliz

A convidei pra dançar

Uma canção sem fim

 

Vi a sombra chegar

Estava bem feliz

A convidei pra dançar

E rimos um amor sem fim

 

E vimos outros gestos

São iguais aos meus

Igual respondi

 

Vi as ruínas que habitei

Devolvi

A luz brilhou

Me calei

E ouvi.

 

… Enquanto delicadas flores de udumbara brotam à margem do lago.

A Sombra e a Flor