“O pathos, concordavam eles, era a qualidade mais elevada da arte; um poema deve tocar o ouvinte fazendo-o perceber sua própria fraqueza, e deve estabelecer uma comparação entre a humanidade e as flores.” (E.M. Forster)
Há horas os grãos ardem em seus pés. À deriva, num mar de dunas, todas vivas, sem lhe indicarem rumo algum. Sem memória, não sabe dizer quem é ou o que faz ali. Como num sonho, ele simplesmente desperta, e vê-se caminhando no deserto.
A essa altura, o cansaço já dói forte. Acima, o Sol, não mais a pino, mas ainda no prumo das duras horas:
Sombra
Nos grãos que ardem em meus pés
Duras léguas caminhadas
Sob o Sol lambendo a fronte
Dor e espasmos postos à razão de andar.
Aos topos montes cobrem o céu
Dunas já por tanto andadas
Porta-me tão pouco a mente
Em tangíveis formas
Tudo mais me ampara a carne já cansada.
Aonde vou? A quantos passos vou parar?
Mudas! Dunas mudas, que nada respondem! Não ouve mais do que o vento e o barulho de suas passadas na areia. O torpor há tempos já lhe tomara o juízo. Ideias que se misturam:
Sombra
Sob o céu lambendo a areia
Posto ao Sol a caminhadas
Portam as léguas duras formas
Dores pasmas mais me cansam a carne torpe.
Intangíveis montes andam
Mentem e afrontam aos pés que ardem
Tanto as dunas tudo
cobrem
Que tampouco amparam a razão já tão pouca
Aonde vou? A quantos passos vou parar?
No mais, apenas sua sombra, insistentemente a imitá-lo; porém, era a única personagem com quem poderia ele próprio contracenar:
Sombra
Há um homem nesta sombra
De estranha dor Colhida em campos de muitos grãos
Que juram sorte a um rosto estranho
Mas a sombra deste homem
Não o diz nefando ou sem máculas
Se traz com brio sua espada
Ou se esconde
um cetro desleal
Por que crer nesta sombra que se move com o vento?
Eu quero voltar à minha terra natal
Rever os meus que me esperam voltar
Poupar o tirano que me pôs aqui
Reviver a vida que um dia vivi
Onde
estão minhas lembranças?
Onde enterraram o meu passado?
Temo esta sombra
Sol, não vás!
Dê um motivo pra eu caminhar!
Ah, minha loucura!
Temo essa sombra (Sol não vás)
O Sol me ofusca (Onde estou?)
Dê
um motivo (Oh, meu Deus!)
Dê uma caverna pra eu repousar!
Um trilho... de trem... no meio do deserto. E mais nenhuma pista até então, neste tão pouco tempo de vida de que consegue se lembrar. Sombra acordara em um mar de areia e, até aqui, tão somente à deriva navegou. Agora, enfim, algo lhe oferta uma direção...
e dois sentidos. Um e outro lado, ambos a sumir na largura das dunas. Para onde ir?
Nenhum trem. Qual o sentido de um trilho sem trem? Nenhuma placa. Que direção o levará ao contato com alguma vida humana? Só e por si; assim deve tomar a decisão. Ah, essa liberdade mais que dói: corrói-lhe os ossos.
Sombra apruma a fronte para qualquer dos lados e vai...
Narrador
Quando o trilho cega? Quando o cego já chegou?
Quão se trilha a meta? Quando a meta já passou?
Nau, a férrea nau, vagando a esmo
Nau, que ferra “now”, vagando a si mesmo
Nau, tão férrea nau, vagando assim mesmo
Quando o trem se perde? Quando quem se perde é o trem?
Quando o trem se move? Quando o trilho é que vem?
Nau, a férrea nau, vagando a esmo
Nau, que ferra “now”, vagando a si mesmo
Nau, tão férrea nau, vagando assim mesmo
Vem e vai, e tanto faz
Quando se perde um grande amor
Gira o mundo e volta atrás
Quando a estação se afastou
Quando se descobre um trilho e tem que caminhar
Qual dos mais de cem sentidos aponta um lugar?
Nau, a férrea nau, vagando a esmo
Nau, que ferra “now”, vagando a si mesmo
Nau, tão férrea nau, vagando assim mesmo
Algum tempo se passou... Não me pergunte quanto, é tolice! Este escorredouro indelével, chamado tempo, que tentamos com alguma graça estancar para contar-lhe as gotas...
Quando, enfim, a sombra errante avista, ao longe, cúpulas de edificações sobressaltarem-se à paisagem modorrenta, então se apressa para adentrar a cidade, na ânsia de encontrar alguém que possa retirá-lo daquela causticante masmorra
de indigência e solidão em que se enfiara.
Entretanto, transpõe o portal e constata que na cidade não há mais uma só vida. Resta ali apenas um mundaréu de construções inócuas, nada mais que um rastro da vida pretérita. Tal como o trilho sem trem.
Sombra
Ei, então cadê outros homens
Trás as pedras não mais se vê
Se puseram a andar pelos cantos
Se curvaram no pó pro seu livre rastejar
Acabou-se o sorriso franco
Ou jamais se riu tanto em algum lugar
Ei, então cadê
outros vermes
Mostrem o seu rosto, voltem dos esgotos
Vêm aqui, hoje o Sol compensa
Vale a pena vir pra dançar
Reviver calma praça, tenta
Tragam as crianças pra brincarem ao Sol
Será que está posto
Acabou-se,
então, tudo aqui está morto
Brigaram por pouco
Só sobrou um farnel em festim sob o pó
Pra quê?
Hoje o Sol compensa
Vale a pena vir pra dançar
Reviver calma praça, tenta
Tragam as crianças para verem
o sol
Os doentes, não deixem os velhos sós
Tragam as lembranças, o que ficou pra trás
Tragam tudo, talvez dê pra recomeçar
Dia soturno que insiste em se manter. Não propriamente brilha, mas apresenta uma brancura opaca e sem graça. Sombra grita e só as pedras lhe devolvem a voz.
Essa solidão que se arrasta junto aos seus pés! Um passo, dois. Tantos
gritos, quantos ecos.
É quando sente o vazio agigantar-se dentro de sua carne que algo, enfim, se manifesta. Sua voz não mais retorna das pedras. Seus gritos não mais reverberam naquelas construções. O eco, que respondia a cada chamado, se emudece. Faz-se um terrível silêncio...
Dentro em pouco, o silêncio se quebra. Entretanto, não são mais os ecos de suas próprias palavras que ouve. A estas somam-se outras, e outras, e mais outras, até formarem um coro de vozes. Cantam-lhe coisas estranhas. Coisas que
não se deseja ouvir. É uma sinfonia medonha, aquela vinda das pedras. O pavor toma-lhe as rédeas. Encolhe-se como pode.
Narrador
Ah!
Deu um urro
E no nada a voz se fez
Ecos de aflição
Ah! Outro urro
Mais um nada respondeu
Ecos de aflição
Eis um homem a caminhar
Entre sonhos e mentiras
Que suas mãos contavam
O homem na
cidade
E a cidade no homem
Eis um homem a caminhar
Sem bater no chão a areia
Que seus pés levavam
Deserto na cidade
E na alma do homem
Gritou:
Sombra
Me ajudem
O grito vem das entranhas
Que me devoram a carne
Que me esfolam tanto os pés
Me ajudem
O grito vem das entranhas
Que me devoram a mente
Que cortam a minha garganta
Brumas ocupam a cidade. Fraca chuva aumenta o sombriço. E o nosso herói continua ali, ao chão, encolhido e pávido. Tremendo, arrisca uma espiadela e vê projetada na branca névoa uma sombra a se mexer! Em pânico, arranja algum espaço no ventre para se
encolher ainda mais. Outra olhada. Constata que há algo de si naquele vulto. Algo do qual passara toda a sua vida a esquivar-se. Como se os seus desejos mais selvagens, seus medos e frustrações, ganhassem vida naquele negro monturo.
Penumbra sagaz e traiçoeira, que quer lhe roubar a vida e revelar ao mundo segredos que até ao mais louco dos homens envergonhariam! Porém, por trazer algo de incontido em si, aquele negrume o faz recordar-se: vive das letras.
Sabe-se, agora, escritor.
Sombra
Me olhou
Uma sombra olhou pra mim
Tinha mil faces o seu rosto que não pude ver
Viu em mim
Outra sombra viu em mim
Via mil faces do meu rosto que não pude crer
Sou a sombra
Que sente o desejo de sair do chão
Sou a sombra
Que leva uma pena nas mãos
Embalou-me nos seus braços
Aquela sombra
Virou pra mim, mas
Mostrou que havia uma vil forma
A sombra acenou pra mim, mas
Mexia-se em estranha dança
Havia mil
gestos, tentei retê-los, não pude
A sombra
Apontou pra mim, mas
Seus longos dedos curvaram-se
A sombra
Mostrou pra mim, mas
Espinhos tampavam o caminho
Havia mil flores, estavam mortas a cobrirem
o chão
Embalou-me nos seus braços
Tava tão frio que não consegui mais dormir
Sou a sombra na sombra de outro homem
Que quer escrever
Sou a sombra na sombra de outro homem
Que quer volitar
Havia mil
braços, todos entravam em meu rosto
“Sombra”
Gritou pra mim, mas
Calado não pude mais gritar pra sombra
Sorriu pra mim, mas
Trazia um sarcasmo nos lábios
Havia mil corpos, todos com entranhas que se viam
Sombras
Jogou em mim, mas
Haviam apagado os papiros
A sombra
Chamou pra vir, mas
Pesavam as pernas tão gastas
Havia mil sonhos, todos rasgados que nem fossem meus
Embalou-me nos seus braços
Tava tão vivo que
não consegui mais dormir em paz
Fez sinal
Uma flor fez um sinal
Estava tão calmo ali.
À margem do rio, Alma vê o Sol beirando o horizonte. À contraluz, a silhueta de um homem, com os joelhos imersos na água, segura uma flor. Ao derredor, árvores molduram longas torres. Tudo é tão terno e frágil, que chega a temer que qualquer
algo de si desmanche aquele todo, como as mínimas marolas a fatiarem o reflexo na água. Em curtos movimentos, o homem dá meio passo à frente, erguendo-lhe a flor; uma réstia de rosto revela-lhe, enfim, certa familiaridade...
Eis outro instante. Aqui, nada urge, nada insta.
Um estrondo ritmado em rápidos compassos invade-lhe tão subitamente o sonho, esfacelando-o em um átimo. Desperta, ainda bêbada de sono e de pouca consciência. Recobra-se e confere pela janela o trem já prestes a adentrar a cidade. A viagem pelo Oriente continua:
Narrador
Andando, rumo certo
O sonho lhe contou
A tal flor do deserto
O trem vagueia presto
Instante em que acordou
Mil grãos sobravam restos
Tudo se fez indizível
Seu amor surgiu do rio
Contra o Sol, às mãos
a flor que brotou junto ao charco
O vento trouxe o gosto
Do cravo e cardamomo
Gozo no deserto
O trem vagueia incerto
No tempo que parou
Pra um sem-fim de gestos
Tudo se fez indizível
Seu amor
surgiu do rio
Contra o Sol, às mãos a flor que brotou junto ao charco
Do regaço
Pela sombra
Vem da lama, vem
Para além da estação, a cidade esbanja vidas desnudas em alegria. Alma nunca estivera tão longe de casa e, ainda assim, sente-se pouco estrangeira. Como se afeiçoou de pronto àquele povo!
Alma
Ei, há tanta vida aqui fora
Todos estão às ruas pra verem o Sol
São muitas crianças brincando
Outras a escutarem os anciãos
Um jovem casal se enamora
Enquanto dedilha uma mística canção
Ei, há tanta vida aqui fora
Casas ficam abertas durante o pão
Enche a cidade em oração
Trama mil fios pobre tecelão
Enquanto recita uma mística canção
Segundo E.M Forster, “No Oriente a civilização vagueia como um fantasma, visitando novamente as ruínas imperiais, e será encontrada não nas esplêndidas obras de arte ou nos feitos grandiosos, mas nos gestos que fazem os indianos bem-educados quando estão
sentados ou deitados”.
Ah, que gestos! Esse povo sabe fazer da rua um teatro a céu aberto. Conversam entre si como se dançassem; e dançam como se conversassem com os deuses. Gestos que parecem transcender, de alguma forma, a nossa realidade, conduzindo-nos
a um fantástico mundo paralelo.
Alma está maravilhada. Conhece-os tão bem pelos livros! Seus sentidos estão aflorados e, como nunca antes, frui...
Narrador
Silêncio
Num claro instante em que se perdeu
Para ver doces mãos
A dançarem um tempo infinito
A riscarem uns versos no céu
Nem tava lá
Quando parou pra ver a moça dançar
Aprendeu com os deuses
E dos olhos
fez brotar a vida
E do gesto, o amor que se refez
São fantasmas nas ruas
São fantasmas nas casas
Ocupando as ruínas
Que algum rei deixou
Não nas obras de arte
Nem nos altivos feitos
Mas nos simples
trejeitos
Nos lugares comuns
Onde quer que se movam as mãos
Os olhos vão atrás
Onde a mente se encontra mais
Onde faz o amor surgir
Onde se deixa a dor cair
Onde se deixa o mal em si
Longe a alma
voou dali
No céu que ali parou
Mas como é inconveniente a miséria escrachada no trajo desse povo, que lhe ancora a alma e lhe arranca o gozo. Estranho contraste, inesperada interação com aqueles personagens, que conhecia tão bem pelos livros. Sente-se espectadora única de uma encenação
épica. Constrange-se...
De volta, Alma anima-se em constatar que a poesia ainda está ali, naquela música, naquela dança. Algo da vida simplesmente flui por aquelas mãos.
Alma jamais havia sentido a vida pulsar tão fortemente dentro de si. Aquele fim de tarde remete-a à hora em que recolhe sua barraca de flores e vai para casa. Um dia após o outro. Mas jamais havia atentado para o fato de que,
naquelas horas áureas, o dia ainda pulsa, as flores ainda nos oferecem o seu perfume e o esplendor de suas cores, os sonhos ainda se revivem, ouvem-se os gorjeios dos pássaros e o canto das cigarras, veem-se as crianças brincando na porta
das escolas, a vitrola toca a Ave Maria das seis.
Narrador
Estranho assim ficou quando tão perto viu
Há crianças fartas, pouco pão
Há papoulas nos jardins das ruas
Há um povo que esqueceu de ser
Tais doces mãos
A gotejar no céu, tão fortes cores
A dizer o que as palavras
calam
Como Pollock a lembrar os loucos
Como o éter a trazer o gozo
Onde quer que se fale
Onde quer que se ande
Onde se finda um instante
Onde o amor inda vale
Onde nunca desabe
Onde nunca se espante
Onde os livros da estante
Cujas letras não falem
Estranho assim ficou
Já cansada de vagar pela cidade, Alma decide descansar. Encontra uma árvore, próxima a um espelho d’água, e recosta-se.
Por alguns instantes, reflete sobre não se recordar de planejar aquela viagem para terras tão distantes. Em verdade, a última lembrança que lhe vem antes de acordar no trem é a de estar à calçada vendendo flores. Talvez porque
passara tempo demais trabalhando.
Calmamente, retira da bolsa o caderno de memórias. Também não se recorda de já ter lhe confidenciado algo. Decerto porque aguardara para escrever algo que realmente se destacasse em sua vida
quase linear.
Abre-o, folheia uma página, duas, três, todas brancas. Avança algumas mais e vê memórias que não são suas. Textos e imagens que, apesar de conterem certa familiaridade, não correspondem à sua vida.
Subitamente, forte vertigem arranca-lhe o fôlego e os sentidos. Perplexa, constata que não possui memórias. Sente que sua vida começara exatamente naquela calçada onde vende flores. Dali para trás, sem lembranças. Não havia infância,
nem família, nem amigos, nem amores.
Narrador
No seu diário
O herói estava lá
O dragão estava lá
A donzela estava lá
Mas não tinha qualquer foto sua nos tempos de infância
Virou a folha, viu que
O velho estava lá
O assassino estava lá
A Virgem
estava lá
Mas não tinha qualquer foto sua a lembrar seu rosto
Aqueles não são seus
Os ritos não são seus
O mundo não é seu
Onde estão os seus anéis (Alma: Cadê os anéis)
Cadê os seus papéis (Cadê
os papéis)
E os seus pincéis (Me dê os pincéis)
São os outros (Não são os meus)
Outros ritos (Não são os meus)
Um mundo que ainda não tinha pintado
Pouco tinha de si pra que pudesse ver
Outros sonhos
(Não são os seus)
Outros contos (Não são os seus)
Outras vidas
Os vampiros tavam lá (Já perdi o meu sangue)
A montanha estava lá (Já perdi o joelho)
A esfinge estava lá (Já perdi o segredo)
Poucos
grãos tinha andado, inda não tinha sombra pra ver
Vê o herói
Vê o dragão (Eu sei que era eu)
Vê a donzela (Eu sei que era eu)
O velho sábio (Eu sei que era eu)
O assassino (Eu sei que era eu)
Virgem Maria
(Eu sei que era eu)
E tem os outros (Eu sei que era eu)
E tem os ritos (Eu sei que era eu)
E tem os mitos
Eis o primeiro momento em que os personagens entrecruzam-se... Sombra, fadigado com a solidão de muitas horas, e Alma, recém-tomada de assalto por eloquente vazio. Ambos perdidos de lembrança pouca.
As águas daquela fonte caem com vida e inspiram alguma trégua. Alma senta-se à borda e mira sua imagem na água. Pensa que jamais esteve tão desnorteada. Também, antes, pouco se ocupara em se buscar. Carrega agora no rosto a gravidade,
abandonando a complacência juntamente com a própria ignorância.
Exatamente ao seu lado, Sombra se aproxima. Não se veem. Ele se ajoelha no chão e apoia os cotovelos na borda da fonte. Curva-se, então, mas não vê o seu reflexo! Espera... Há uma imagem refletida na água, mas não é sua. Tem, em seu
lugar, o reflexo de uma mulher.
Alma também vê algo. Uma sombra humana a projetar-se, retorcida nos rebordos da fonte. A moça recua um pouco, olha para os lados, não vê outro corpo além do seu. Leva as mãos à boca, sofre de espanto. Olha para dentro do espelho d’água
e vê, ao lado do seu reflexo, a cabeça daquela sombra. Porém, percebe que não há sombra sua naquelas águas. Volta-se para fora da fonte. Olha seus braços: estão lá. Mas, abaixo de si, nenhuma sombra a acompanha. Há quanto tempo será que
isso lhe ocorre? Ah, como é distraída...
Por silenciosos minutos contemplam-se, até o Sol se pôr.
A flor que boiava na fonte o havia trazido até aqui. Mas não imaginava que veria aquele rosto de mulher refletido na água, de traços finos e serenos. Sombra sabe: é o mesmo que imaginara sobre a protagonista do livro que estava escrevendo.
Depois da estranheza, a contemplação. Vê-la pela primeira vez com os próprios olhos, naquele espelho d’água... A ela dera um pouco de si. Na verdade, deu-lhe tudo. Gerou-a e cuidou no fio das horas. Mas Alma trazia ali uma maturidade no
olhar que o escritor não havia imaginado.
Com o pôr do Sol, ficou só. Alma já havia partido.
Narrador
Reluziu,
Num breve instante
Às águas calmas
Reluziu
Foi um rosto
Não mais um
Estranho rosto
Reluziu
Surgira como a flor
Brotada em meio ao caos
Num riso incauto
Era uma flor
Que em
doce brisa se desfez
Mas reluziu
Como um presságio
Às claras águas
Reluziu
Mas foi um rosto
Não mais das
Entranhas, rosto
Reluziu
Vinda como a flor
Brotada em meio ao caos
Num riso fausto
Foi uma flor
Que em doce brisa se refaz
Mas o instante assim parou
Pareceu-lhe um outro amor
Talvez uma lembrança
Além do que pudera dar
A triste pena que me fez sonhar
Tão longe
Fez-se um gesto
a flutuar
Tão longe
Longe riso penetrou o regato
Longes
Demorou-se olhar aos longes
Longes quantos quis voar
Mais alto quanto acasos
Me fizessem só
Tão longe
Longe quanto espera ver
A sombra
refletir às águas
Longe
Longes águas voam suas asas
Longe
Reluziu de mim uns longes
Longes quanto quis voar
Mas tão só no ocaso
Pude ver o Sol
Mas o instante assim parou
Surgira enfim um outro amor
Talvez tão tristes rosas
Me fizeram ser assim
Uma sombra que não mais se quer ver
Não há mais sombra alguma na fonte, o Sol havia se posto. Vendo-se só, Alma se levanta e sai a andar. Desta vez, não é o cenário que a distrai, mas os próprios pensamentos.
Algo se desnudara desde o momento em que parou para descansar: as lembranças que não eram suas, a vida vivida pela metade, a viagem não planejada, a falta de uma sombra a lhe acompanhar os passos, e aquele vulto de homem... Não
sabe definir o que é para si aquela silhueta. Uma mistura de medo e coragem, como se horror e potência convivessem na mesma forma. Mas sabe que aquela é parte sua. Tem, pois, a sombra de um homem. Fugidia e diversa, ela é, porém, sua.
De súbito, brota-lhe um pensamento de inquietude, fazendo-a aprofundar-se mais em si própria: a incerteza de se saber Ser. De onde vem? Quem é? O que é? Na verdade, Ser ela sabe que é, pois está ali, existindo, sentindo, pensando.
Sim, existe! Mas por que mãos?
Não tem mais dúvidas: possui, sim, uma essência inventada. Presume que saiu de uma máquina de escrever. Sofre forte vertigem. Dá até para sentir o cheiro da tinta à sua volta.
Alma
Vim do livro
Que não explica de onde vim
Qual o sentido
Quais eram os planos
Pra que vida?
Do livro
Que minha história mal vivi
Foi-se extinguindo
Fui definhando
Quais os planos?
Vim do livro
Do qual passado esqueci
Foram palavras
Que desbotaram
As flores
Dum livro
Do qual não consegui sair
Mais eu nadava
Mais me afogava nas horas
Duras horas
Um só minuto
E tudo para
Canta bela
e negra voz
A aliviar
Um só minuto
E tudo para
Toca uma nota azul
A aliviar
A inebriar
A entorpecer
Vai desbotar
Estou fadada a ser livre
Estamos todos nós fadados a ser livres
Livro
Que tem paredes levantadas
Lá me trancaram
Me desnudaram
Me queimaram
Do livro
Livro que me dava náuseas
Atrás de tudo
Não existia mais nada
Mais que nada
Alma se demora uma noite toda a andar pela cidade. Chuva fina insiste em cair. Seus pensamentos ainda pululam entre uma e outra tese.
É tarde, as pessoas já se recolheram há muito. Sozinha, vai costurando por entre as pedras edificadas. Construções, pensa, que pareceriam completamente inúteis, não fossem os homens a ocupá-las ou admirá-las.
Passa por
um pequeno jardim. Gosta de trabalhar com as flores. Registram, com encanto, momentos importantes; entretanto, com estes perecerão, fiéis, restando somente na memória. Eis sua beleza: são majestosas e ternas, porém frágeis e fugazes.
Chega, então, a um largo, com muitas estátuas. Alma passeia por entre elas, fitando-as no rosto, observando seus gestos. São retratos de heróis, artistas, pensadores, santos, anjos. São valores em muitos matizes, ali concretizados.
Talvez pelo cansaço de andar tanto e só, um instante de devaneio lhe toma o ímpeto. Alma encara nos olhos uma das esculturas e as questiona: “O que de nós encontramos em vós? A altivez de vossos gestos, a revelarem nossos feitos
heroicos, ou as vossas sombras, a esconderem a dor dos vencidos – e esta velada na nossa própria dor... a dor do próprio herói-tirano?”
A musa dá um passo ou dois e lhes fala, com mais vigor: “Não percebeis que, sem a luz do dia, exibis senão frágeis sombras, enquanto vos enganeis com os vossos próprios gestos altivos, feitos somente da pedra fria, e que algum
dia também aniquilar-se-ão?” Como o poema a tocar o ouvinte, agora é Alma quem busca tocar o poema, fazendo-o perceber a própria fraqueza.
Alma se cala. Sabe que há muitas esculturas ali. “São valores em muitos matizes”, conclui.
Alma
Me olhou
Uma imagem olhou pra mim
Como ninguém já o fez
Era calmo e estoico o seu olhar
Como só mirasse a si
Me sorriu
A efígie riu pra mim
Como ninguém já o quis
Era raro e retórico o seu sorrir
Nada
à frente de si
Nada além do que era
Há tantos gestos aqui
A falarem mais do que jamais se ousou
Alguma essência de tantas flores a voar
Bronze e pedra dançando ao luar
Abrigou (Sombra: Tava tão frio)
Uma
estátua me abrigou (Tava tão frio aqui)
Como ninguém fez pra mim (Não consegui mais dormir)
Era caro e heroico o seu abraço (Embalou-me nos braços)
Como se não visse a si
Volitou (Eu sou a sombra)
A escultura volitou
(Eu sou a sombra)
Como que dentro de mim (Que quer escrever)
Era claro e lógico o seu fluir (Quer volitar)
Esculpido em si (Uma flor tava ali)
Nada além do que era
Há tantas formas aqui
A falarem mais do que
jamais se ousou
Alguma essência de tantas flores a voar
Nada à frente de si
Nada além do que era
Há tantas formas aqui
A falarem mais do que jamais se ousou
Alguma essência de tantas flores a voar
Nada à
frente de si
Nada além do que era
Há tantos gestos (Há tantos gestos)
A falarem mais do que jamais se ousou (Há tantas falas, sinto o cheiro das flores)
Alguma essência de tantas flores a voar (Sinto que quero voar)
Bronze e pedra dançando ao luar (Para dançar ao luar)
Após o episódio da fonte, as lembranças de Sombra transbordaram. Aquele trem, a cidade, os monumentos... Está no cenário que exaustivamente pesquisara para escrever seu livro! Entretanto, onde a história jamais seria contada. Onde sua musa o guardaria
apenas na fantasia; seriam lembranças do que jamais viveria.
Sim, Alma era sua musa. Uma florista, tão frágil quanto as flores. Coitada, era só. Filha única, perdeu cedo pai e mãe, que também não tinham irmãos. Parentes mais distantes, não os conheceu. Também não se esforçou para fazer
amigos. Dera-lhe uma alma insossa, sem capacidade de tremular-se ao pulso da vida. Ao longo daquelas páginas, quase nada viveu. Todos os dias, andava muito pouco para chegar do apartamento à banca de flores e da banca ao apartamento. No
mais, apenas pensamentos preenchiam-lhe o resto de vida.
Chegou o escritor até a lhe oferecer alguma esperança. Mantinha nela a pretensão de viajar um dia para o Oriente. Esperança rasa, qual Sísifo a manter a pedra no alto do monte. Mas, no fundo, ela sabia que jamais iria. Não fosse
o dinheiro, faltaria coragem. E se houvesse coragem, não teria impulso. No fim, faltar-lhe-iam vísceras para realizar qualquer sonho. No fim, a simpatia pelo povo de lá serviria apenas para que esquecesse um pouco do povo de cá. Era pra
ser assim...
Mas sua personagem foi crescendo que foi criando luz própria. Realmente, quase nada viveu entre as flores e o apartamento. Entretanto, mesmo naquele pouco de vida, houve de brotar em sua face um sorriso ingênuo e
puro. Depois, surgiu um olhar compassivo, acompanhado de gestos firmes, que ao próprio escritor faltava. Por fim, a florista tinha uma alegria inabitual, também desconhecida pelo seu criador.
Então, num belo dia, em que tudo pareceu colorido com mais vigor... Já no fim da tarde, cujas horas lentas fizeram-na pressentir não menos que a continuidade sossegada da vida... Quando uma brisa transcendeu-lhe o tato, concedendo-lhe
uma ponta a mais de alegria... Em que fechou os olhos para perceber o ar fresco entrando nos pulmões, o coração batendo manso, a cabeça pesando leve, e nada em si pareceu-lhe entrecortado e pouco... Em que tudo à sua volta se tornou tão
terno e perene, fazendo-a desejar a vida como nunca... Neste momento de quase descoberta, que em breve se romperia em epifania... Neste único e infindo instante, já quase no final do livro, em que Alma despertara no escritor alguma graça...
um carro repentinamente invadiu a banca de flores na calçada e lhe tirou a vida.
Um profundo vazio imediatamente tomou conta do escritor. Não saberia ele se pelo término próximo do livro ou se pelo fim consumado da musa. Nauseado,
mal teria forças para um epílogo, após aquele trágico. Não desejava mais escrever. Também não queria fechar aquelas páginas. Mas história nenhuma simplesmente acaba na morte, sempre há um desfecho. Terminar o livro... Um temor queimou-lhe
o corpo. A cabeça pesou e, então, caiu no chão, semiconsciente. Encolheu-se, e ali ficou, imóvel, hora após hora.
Revivia o pesadelo, sem descanso. Não, esse final não estava planejado, mas Alma fizera por onde. Dera-lhe o conformismo, tudo o que precisava; mas ela alcançou uma ternura cortante, como se estivesse prestes a negar a imanência
do mundo. Agora, para ele, somente a morte poderia livrá-la desse mundo sem sentido!
Tremeu-se. Sem ela, viveria só. Ou melhor, ainda vivia? Nem isso sabia. Encolhido atrás da porta do escritório. Foi assim que adormeceu, antes de despertar no deserto. Esta havia sido sua última lembrança.
Alma
Então que em derradeiro instante
À força é posto termo a tudo
E o nada, tão preciso, falha
Corta-me ao meio
Eis que, em paz, mereço a escuridão
Das torres do silêncio
E ando cego pela corda bamba
Quem testemunha
esta minha
Inglória luta contra tal
Rufar profano vindo de tiranas dunas?
Qual vernáculo descreve à vera
Este chão que piso
Qual tributo ao trono irei pagar?
Ah, quantas noites acordado
Esperando atrás da
porta
A musa dos parnasos últimos voltar
Qual louco sonho nele crê sujeito insano
Ah, triste queda veio a foice
Que mostrou-me as chaves dos portões de ferro
E uniu meu mundo ao seu
E agora posso dar, enfim,
último beijo
Então que num primeiro instante
À força é posto termo ao nada
E tudo impreciso falha,
Corta-me ao meio
E, sem paz, me deito à escuridão
Das dores sem silêncio
E quase caio dessa corda bamba
Quem traz à destra a libra,
Atesta quanto vale ou não a vida?
Formará ao meu lado a fila dos diletos?
Se és tu, quão pesa carregar na mente um juiz
Que escarne e nada em mar de rosas púrpuras?
Ah, quem levou de
mim a musa
De meus últimos parnasos
Para correr livre nos Elíseos?
Ah, qual sua tríade e em que céu ficou?
Ah, quem está com a chave
Dos portões que guardam o jardim de sua casa?
Em que rio navegar
Para
que possa dar enfim último beijo?
Então que as letras da estante?
O nada não põe termo a tudo?
A força vem mostrar
A sombra do meu pensamento
E, sem paz, me deito à escuridão
Das dores em silêncio
E caio
livre dessa corda bamba
És o carrasco dessa gente
Desumana que acusa
Caído em queda de lasciva fúria?
És Virgílio a levar-me à porta do 7º círculo
Me ver em exílio neste sangue afogar?
Sim, tenho nome. Sou Públio “Virgílio” Maro, poeta romano, nascido e morrido antes de vossa era. Tenho por missão, ou sina, perambular pelo tempo, acompanhando grandes jornadas. Vi Eneias chegar às margens da Itália e Dante afundar-se nos profundos círculos
do Inferno.
Vim para relatar mais uma viagem, talvez a mais estranha de todas: um escritor que adentra a própria história, vivendo no mundo que ele mesmo criou. Como um dramaturgo que atropela a coxia, devassa o tablado e desnuda seus personagens,
bem diante do público.
Cá estou, também, para invadir o vosso palco e desnudar o homem. Falo das vossas fragilidades, quais vos aproximam das flores. É preciso, pois, gravidade e serenidade para apontá-las.
No entanto, ó homens, quantas dessas fragilidades perambulam sonsas em livros de ideias circulares, que, de tantas voltas, hão de vos causar um embrulho no estômago muito antes de vos oferecerem alguma saída do próprio martírio!
Tais obras são, realmente, bem escritas e contam deliciosas histórias. As palavras ali flutuam e harmonizam-se tal, que ao leitor não faltará prazer e descobertas. Certamente não são desprovidas de qualquer beleza e verdade, posto que
homens inteligentes as escrevem.
Entretanto, autores há que se aprofundam em si próprios para tentar desbravar o espírito humano. E encontram, então, uma velha moribunda e caiada de joias, tornada feia e má, crendo-se com alguma
beleza e encanto. Mas como pretendem parecer jovens e cheios de viços! Por fim, escreverão tantas momices intelectivas que, de tanto mau humor e alguma sagacidade, estarão sobretudo tratando de justificar a arbitrariedade de suas próprias
neuroses, potencializando, contudo, as vossas. Mas, por favor, não façamos um index! Deixemos que cada um por si encontre o livro de sua vida.
Tive que aparecer nesta que é a história da história. Às ocultas aproximei os dois personagens e o que ocorreu? Nossos heróis tiveram uma crise de histeria. Peço desculpas. Inicialmente não me revelaria, mas como é frágil o homem!
Seria menos trabalhoso cuidar somente das flores...
Narrador
Deste ao homem o que ao homem é dado ter
Teu rosal sonhavam tantos
No orvalho, o sal de ternas lágrimas
Deste apenas o que foi-lhe dado ver
Teu rosal era o mais belo
Rimaste o perfume às cores
Mas negaste simples
flor aos teus
Deste às letras tuas rosas (Sombra: Nascera ditosa a flor das montanhas de Lácio)
Mas presa às formas tuas rosas sentiam (Mas farto era o brilho e cheiro da pólvora)
Tu forraste o chão de lindas rubras sedas
(E a voragem aos despojos da vida moderna)
Mas houve a gélida queda das pétalas (Que não pude ver além das grades e das macas)
Creste das flores fastio e morte (Sob a rosa, uma ossada em tumba de ouro e mármore)
Mas foram fortes
na tua vigília (Mas não vi que era a minha derrocada)
Viste apenas no orvalho o fruto da noite (Apenas via sobre mim um panteão de falsos deuses)
Mas elas choravam a morte dos teus (Brindando a morte dos meus)
Viste apenas
o que o homem cego vê
Chora tua alma rupestre
Chora fértil campo às tuas flores
Creste apenas no que o homem cego crê
Viste um par de mãos de ferro
Esmagando tuas rosas
Mas não creste em tuas próprias mãos
Viste
apenas o que um homem cego vê
Alma ainda vagueia pela cidade, enquanto Sombra está a procurá-la. Ao contrário do começo da história, agora é Alma quem está perdida. E lá se vai uma noite perambulando.
Sombra chamou-a por diversas vezes. Em vão, pois ainda
não é pelo verbo que se comunicam. Buscou-a exaustivamente por todos os lados, nas ruas e largos.
Vê uma poça abrigar-se no chão. “As águas, é claro”! Revelaram-lhe a musa uma vez, hão de mostrá-la novamente. Procura-a, então,
em todo resquício de água no chão. Fez isso por todo resto de noite.
Até que a encontra, boiando em um filete de água adormecido na rua. Já é dia, ainda de pouco tempo. Ela demora a mirar-se em uma dessas poças. Está triste. Pensa o escritor: aquele era o semblante que eu havia tentado lhe colocar
durante toda a narrativa do livro. Intento frustrado e vencido pela doçura da personagem.
Alma se espanta ao voltar a ver aquele vulto. Uma sombra fraca, quase misturada ao cinza ainda escuro do logradouro. Disforme de tão alongada,
tem as pernas fincadas na rua e o tronco flutuando em uma construção.
A sombra, com uma das mãos projetada na parede, acena. Alma responde, mas ele não a vê. Sombra se debruça mais perto da água e vê que ela havia se afastado. Alma está próxima à parede onde está projetado o tronco dele. Sombra,
então, aponta-lhe para que volte à poça. Ela atende. Ele faz um novo aceno na parede e Alma responde, pelo reflexo da água. O escritor, então, aponta para outra poça e, lá chegando, vê, pela água, que a mulher também se aproxima.
Sombra anima-se e indica mais um resto de água, outro, e outro; Alma, crê haver ali um caminho certo e diligentemente o segue. Começa, assim, um balé, onde uma sombra, desajeitadamente longa e repartida pelos recortes da cidade, vai
saltando de poça em poça.
Narrador
Para onde o dedo aponta os caminhos
Ela vai atrás
Para onde o vento traz o odor das flores
Ela vai atrás
Para onde o anjo voa seus destinos
Ela vai atrás
Para o monte aonde o cara leva a pedra
Ela vai atrás
Não tinha sombra
Mas não viu
Enquanto se distraía
Há em tantos prédios marcas a seguir
Há uns tantos cheiros outros a seguir
E há em pedra um anjo
Mas também
É o cara que desce
a montanha
A pegar a pedra
E lá se vão, Alma e Sombra, criatura e criador, se entenderem. Enquanto isso, peço novamente licença para devassar o tablado. Agora, desejo desnudar a mim mesmo. Ainda sou um narrador lírico, intrometido e efusivo, que busca a onisciência, mas acaba por se atrapalhar na própria estupidez.
Narrador
O meu coração
Viu muita sombra a flanar
O meu coração
Viu muitos sonhos pelo ar
Mas chorou
Quando viu
Tantas sombras revoltas despidas das mãos
E sangrou
Quando viu
Sonhos que não querem voltar
Mas
chorou
Quando viu
Que rebeldes já eram tiranos quando o rei caiu
Quando viu que injusta Lei
Também estava um tanto em mim
O meu coração sangrou (Sombra: Há tantas sombras e luzes dançando)
O horário da manhã já avançou bem e a jornada continua, quando, à vista de Alma, descortina-se aquela que lhe era a visão mais inspiradora. No lado de lá da ponte, bem à sua frente, está o templo com o qual sonhou muitas vezes. Sonho do qual sempre acordava
com uma réstia de pressentimento: uma jornada deveria ser seguida. Presságio este misturado com esperança pouca, e esta maculada por mil dúvidas.
Ali está ela, no lugar que lhe inspira paz. Agora, pouco importa
de onde vem. Talvez, pensa, o próprio homem ainda esteja longe de descobrir a fonte de todo o Universo. Quiçá esse ser, cognoscente e cognoscível, não mais consiga do que inseguras ranhuras no véu que nos excede ao infinito.
Alma impressiona-se com a soberania do templo. Um conjugado de seis enormes obeliscos, todos em tom terroso e detalhados com entalhos de muitas imagens, a garantir belíssima irregularidade. No meio deles, repousa um pequeno lago
de água verde. Tudo se conjuga perfeitamente com o céu de intenso azul e com uma vegetação diversa. Há ali muito mais do que reparara nos sonhos. Um espetáculo de formas e cores vivas, apesar da nota de pouca bruma, inexplicavelmente mantida
apesar da hora matinal mais avançada. Alma confunde-se se está novamente a sonhar. Sente-se, pois, em um quadro com pinceladas levemente impressionistas.
Ela, então, reflete: “Não venham somente mergulhados em sanha os versos
a inspirarem os homens. Eles endurecem o seu coração, fechando portas e janelas para si, para o outro e para o mundo. Antes, cantem as fragilidades que instam o seu engrandecimento, em seu potencial mais terno: o poder de amar. Amar a
si e ao outro, apesar de suas fraquezas. Amar o que se enxerga, apesar da visão opaca; amar o agora, apesar das inconstâncias do amanhã; e amar a vida, apesar do inexorável”.
Ao atravessar a ponte, Alma se vira e percebe que a sombra não está mais ao seu lado. Procura-a à sua volta e a encontra à frente, já avançando lago adentro, enquanto a água enlodada, de uma verdura opaca, calmamente se turba.
Quando a sombra chega ao meio do lago, uma flor de lótus se eleva à altura do peito e um sólido de homem lentamente se forma.
Sombra
Eu tive o sonho mais bonito
Que trazia a flor nas mãos
E vestia uma bata
Entre cem árvores e templos
O ocaso embala o Sol
E seus olhos reluzem
Meio a lodo e água
Alma
Você está aqui
Isso não vivi
Não peguei o melhor de ti
Você está aqui
Isso não vivi
Não peguei tuas vísceras pra mim
Sombra
Algumas vezes eu tive o sonho
Que foi desaparecendo
Como tua memória
Como flores mortas
Era um sonho mais perfeito
Flor de lótus em minhas mãos
Mas não vi o seu rosto
Não vi suas dores
Muitas flores
você deu
Tantos amores pelos olhos teus
E quantos planos você sonhou
Mas viver te deu medo
Pois seu livro não mais abri
Exatamente como no sonho, o Sol a ofusca, permitindo que veja apenas a silhueta do homem. Entretanto, sabe que não terá de acordar e faz da mão uma pala, levando-a aos olhos para tentar enxergá-lo melhor. Então, fragmentariamente, sua imagem vai se revelando,
como pinceladas fugazes a se esquivarem da forte luz.
Alma identifica, primeiro, a bata, larga e clara. A calça é mais justa e escura. Depois, vê no rosto uma barba de pouco comprimento. Há também uns óculos, de
lentes estreitas. Quando, enfim, o escritor vira um pouco a cabeça, vê metade de seu rosto, de semblante amável e sereno. Parece-lhe que a barba está a esconder um sorriso tímido, que, por sua vez, oculta suas dores. Dores estas que também
ela pode sentir, como criatura que é. E vê que, de certa forma, ele compartilhava as dela.
Coro
Eis a estrada do Amor
Que tanto fere os pés
Eis a luz do Belo
Também reluz você
Eis que a Verdade
Recordarás também
Eis que brota frágil flor
A revelar o céu
Alma também entra na água e vai ao seu encontro. Abraçam-se, dançam e riem juntos. E, assim, sentem-se unidos e completos, como se fossem um só, enquanto o Sol brilha intensamente...
Sombra
Vi a sombra chegar
Estava bem feliz
A convidei pra dançar
Uma canção sem fim
Vi a sombra chegar
Estava bem feliz
A convidei pra dançar
E rimos um amor sem fim
E vimos outros gestos
São iguais aos
meus
Igual respondi
Vi as ruínas que habitei
Devolvi
A luz brilhou
Me calei
E ouvi.
... Enquanto delicadas flores de udumbara brotam à margem do lago.